"Avó da arquitetura", como Denise Scott Brown se apelidou, por se comparar à uma guardiã de uma memória institucional que sabe todas as armadilhas do meio em que vive, torna-se impossível não relacionar tal definição com a importância que ela tem no campo da arquitetura e urbanismo, design e fotografia. Na tentativa de impedir seu apagamento, esse texto busca trazer notoriedade para a produção de Denise, uma arquiteta interdisciplinar, cruzando informações obtidas em entrevistas e artigos.
Nascida na Zâmbia em 1931, cresceu em um ambiente machista, tanto devido a cultura de seu país quanto pelas atitudes de seu pai, que ditava as regras e não dava a ela nenhum poder de voz – Denise afirma que planejava nunca mais se subordinar a qualquer homem. Em contrapartida sua mãe era arquiteta, o que a fez acreditar que era uma profissão feminina, e quando começou seus estudos em Johanesburgo, na África do Sul, seu primeiro pensamento ao entrar na sala de aula foi "o que todos esses homens estão fazendo aqui?" (SCOTT BROWN apud ZEIGER, 2017).
Durante a faculdade conheceu seu primeiro marido, Robert Scott Brown, foi nessa época que começou suas experimentações com fotografia. Juntos viajaram para Londres, onde ela finalizou seus estudos, e também por outros países da Europa até decidirem ir para a Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, onde ela realizou seu mestrado em planejamento urbano e tornou-se membro do corpo docente. Também já lecionou em diversas universidades como Berkeley, Yale e Harvard.
Após a morte de seu primeiro marido conheceu Robert Venturi, que também era professor na universidade, e começaram a trabalhar em conjunto. Casaram e mudaram-se para Pensilvânia, onde ele tinha um escritório no qual ela foi sócia e responsável pela área de planejamento urbano. Essa parceria fez com que ela não tivesse o devido reconhecimento, tanto por ser mulher como por ser 'a esposa', fazendo com que grande parte do seu trabalho fosse creditado apenas a Venturi.
Aprendendo com Las Vegas
O livro "Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica" escrito em parceria com Robert Venturi, Steven Izenour e alguns de seus alunos, foi idealizado a partir de um dos cursos que ela ministrava. A ideia era estudar essa nova tipologia urbana que surgia no final da década de 60, um momento pós guerra em que os Estados Unidos crescia aceleradamente com a influência do capitalismo. Uma época marcada pela expansão do rodoviarismo e reflexões sobre o estilo de vida estadunidense. Alguns anos após a publicação eles concluíram que foi mais uma pesquisa sócio-cultural da sociedade do consumo do que uma pesquisa urbanística.
Tudo começou com uma vontade de ruptura com o movimento modernista, derrubando a barreira entre alta e baixa cultura, questionando a diferença de valor atribuída a um outdoor e ao arco do triunfo, por exemplo. Tendo em mente que os dois são frutos de contextos específicos e distintos, criam uma "nova dimensão de análise urbana" (AMARAL; SARMENTO; RODRIGUES; 2021, s.p.), que aceita a existência desses espaços e tenta entender suas dinâmicas. Essa cidade que surgiu na beira da rodovia como fruto do capitalismo e da máfia estadunidense, se apropriando de símbolos, fascinou Denise desde sua primeira visita, que apenas na quarta viagem chamou Robert Venturi para fazer parte do projeto.
Falta de reconhecimento
Apesar de atribuírem até hoje os créditos do livro apenas a seu marido, esse trabalho começou com um grupo de alunos de Denise que se juntou com Venturi e Izenour para desenvolver uma análise objetiva dessa cidade. Ao publicarem pela primeira vez um artigo sobre Las Vegas, em 1968 no jornal Architectural Forum, os editores colocaram na biografia:
Sr. Venturi é um arquiteto que mora na Filadélfia, cujo recente livro Complexidade e Contradição em Arquitetura criou muita controvérsia na época de sua publicação. Denise Scott Brown, que tirou a maioria das fotos que acompanham esse artigo, incluindo a que está na nossa capa, é professora de arquitetura e design urbano e já contribuiu com o 'The Forum'. Ela também é a Sra. Venturi." (1968, apud GREENSPAN, 2018, tradução da autora)
Esse trecho é um exemplo dos diversos comentários que diminuem não só a importância dela na execução do livro como também na carreira que ela construiu com Robert, porque além de responsável pelas fotos, contribuiu nos estudos e textosem conjunto com seus outros dois parceiros de trabalho. Vale ressaltar que a arquiteta não tem o sobrenome de Robert Venturi, ela manteve com o sobrenome Scott Brown de seu primeiro marido, e o jornal simplesmente assume que ela adquiriu Venturi após o casamento.
A parceria dos dois sempre foi uma troca de ideias constante, ela faz questão de afirmar isso. Venturi também reconhecia o papel dela no escritório e ao receber o Prêmio Pritzker de 1991, o qual ela não foi incluída e se recusou a comparecer à cerimônia, homenageou ela em seu discurso, dizendo que sua experiência sem ela teria sido "metade menos rica" (VENTURI, 1991, apud CASTRO, 2014, p.04). Em 2013, um coletivo de alunas da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ao escutar a arquiteta falar em uma entrevista sobre merecer não só o prêmio, mas toda uma cerimônia de inclusão junto a seu marido, resolveram criar uma petição para pressionar o júri a incluí-la. Venturi assinou a petição e junto colocou: "Denise Scott Brown foi minha parceira inspiradora e igualitária" (VENTURI, 2013, apud MIRANDA, 2013, s.p, tradução da autora). A resposta da instituição foi que não podiam interferir nas decisões de júris anteriores, mas Denise afirma que essa petição, o reconhecimento de clientes que acreditam nela e os espaços que ela projetou sendo usados são melhores do que qualquer prêmio.
É mais uma questão de reconhecimento do trabalho deles como algo realizado em conjunto do que uma questão de créditos. Ela conta que deu opiniões no livro "Complexidade e Contradição em arquitetura" e foi o período dela como professora na Universidade da Califórnia em Los Angeles que levou eles a Las Vegas.
O famoso artigo "Room at the top? Sexism and the star system in architecture" publicado em 1989, foi escrito bem antes, no momento que percebeu que os grandes nomes aos quais convivia não a colocavam no mesmo patamar. Scott Brown descreve diversos acontecimentos em que era considerada apenas a esposa, especialmente quando marcavam jantares para os arquitetos e era deixada de fora, e até situações em que pediam para ela se retirar porque queriam apenas “os arquitetos”. A publicação do artigo gerou uma série de intrigas e começou a prejudicar a carreira dos dois no escritório e também de Robert individualmente, o que fez com que ela achasse melhor não falar mais sobre esse assunto e até desgostar de sua personalidade.
Denise precisava reafirmar diversas vezes, não só para outras pessoas mas também para si mesma, que era uma arquiteta, já que essa falta de reconhecimento e até desmerecimento faziam com que duvidasse de seu próprio trabalho e da sua capacidade. Isso a confundia muito porque via suas ideias sendo aclamadas pelos críticos, mas creditadas a Venturi. Chegou a conclusão que suas ideias iam para onde ela não conseguia ir (SCOTT BROWN, 2013, apud MIRANDA, 2013). A arquiteta também sentia a necessidade de assinar seus desenhos com o nome inteiro, para não ter dúvidas que foi uma mulher que fez.
Existem diversas arquitetas que tiveram que mudar de personalidade para serem respeitadas, Denise relata em seu artigo que chegou a pensar que talvez fosse necessário parar de trabalhar com seu marido para que fosse reconhecida pelo seu trabalho. Alguns críticos chegaram a tentar provar que ao Robert se juntar com ela o trabalho se enfraquecia. Diversas vezes também ela foi questionada pela necessidade de reconhecimento, como se fosse frescura e deveria ficar feliz pelo sucesso do marido, e até por mulheres arquitetas mais novas dizendo que nunca tinham sofrido discriminação. No entanto, como ela afirma inúmeras vezes, seu trabalho com Robert tinha uma colaboração mútua sempre, acreditando que individualmente nenhum dos dois teria chegado aonde chegou.
Scott Brown define o campo da arquitetura como um clube masculino de classe média do século XIX. Nesse mesmo artigo ela discute sobre homens admirarem apenas homens e serem considerados tolos se patrocinarem ou por se inspirarem em mulheres.
A fotografia
A foto mais famosa de Scott Brown, em um acervo com mais de 11 mil fotos, é a do Robert Venturi vestindo um terno preto, de costas, imitando René Magritte, em Las Vegas, em uma brincadeira de comparação de escalas com os edifícios ao fundo, como se ele fosse um elemento dessa paisagem já que está com a cabeça alinhada a eles. Denise também possui uma foto nesse mesmo local, tirada por Venturi, só que ela está posando de frente e de modo que ele compara o corpo dela com a placa do Cassino Dunes (ZEIGER, 2017). Essa fotografia não aparece em seus livros ou exposições, não era comum retratar mulheres assim nessa época e não era uma visão dela sobre si, mas de seu marido.
O intuito da arquiteta com as suas fotografias não era criar algo que amassem por simples estética, mas sim divertir as pessoas do mesmo modo que eles se divertiam ao verem esses símbolos, ela gosta muito de observara reação das pessoas ao verem suas fotos. O objetivo era serem usadas como mais uma forma de anotação, que facilitasse a comunicação e o estudo, tanto deles como de quem comprasse o livro. Ela acredita que é uma forma de comunicação visual dos aspectos sociais da arquitetura.
O olhar dela é voltado para a multiplicidade, para a bagunça e o caos do dia-a-dia, não é possível identificar um sistema de fotografia, apenas a característica mais forte, que é a relação com a pop art e pós-modernismo. Uma habilidade de saber para onde olhar que se reflete também no urbanismo e no design (GREENSPAN, 2018). Ela afirma que durante a viagem para Las Vegas ela falava para os alunos não pensarem, apenas fotografarem (CITY DREAMERS, 2018). Ela adquiriu um entendimento de padrões junto com a sua fascinação por iconografia e questionamentos de complexidade de escala, sempre pensando no divertimento do espectador também.
Nos anos 60, A South Street, na Filadélfia, que fazia parte de um bairro afro-americano, virou um foco para a construção de rodovias. Denise colaborou com os moradores locais na elaboração de um plano que preservasse as casas existentes e criasse novas moradias, valorizando a área sem a instauração da rodovia. O plano não foi implementado, porém foi de enorme importância para desenhar o começo de sua carreira como urbanista e fotógrafa, já que tirava fotos com o intuito de investigar as relações locais de poder e classe, fotografando dos bairros ricos aos mais pobres. Foi também na Filadélfia queseu interesse por painéis publicitários e placas começou, pensando nas intersecções de arquitetura e economia.
Sua importância
Seu trabalho como arquiteta e urbanista, em conjunto com Robert Venturi por mais de três décadas, possuía entroncamentos com a engenharia. Pensavam muito a rua como elemento de vínculo e convite para um espaço coletivo, relações do interior com o exterior, contexto, entorno e o pré-existente como estruturantes de suas aproximações. Eles sempre estiveram a par das discussões que moldaram o discurso da segunda metade do século XX, criticando o modernismo por não ter base suficiente para o urbanismo, impossibilitando a inserção em outros contextos. O que produziam já não era mais suficiente para ela, os impactos do pós guerra deixaram explícitos as lacunas desse movimento.
Na Bienal de Veneza de 2016 foram expostas as fotos de Las Vegas, Veneza e Los Angeles. Apesar de sempre terem admirado suas fotografias, demoraram anos para serem levadas a sério e reconhecidas, por mais que grande parte do reconhecimento do seu trabalho vinha somente dessas fotografias. Isso levou ela a não se considerar como fotógrafa, provavelmente num modo de autoafirmação como arquiteta, já que seu olhar sempre foi voltado para a arquitetura e com objetivo de estudo.
"Escrevam sobre meu trabalho!" (SCOTT BROWN, 1989, p.245, tradução da autora) ela pede, já que os críticos quando começaram a ficar interessados no movimento feminista, nas entrevistas perguntavam ao Venturi sobre os projetos e arquitetura e para ela perguntavam apenas sobre os problemas dela como mulher. Denise fica feliz por ser reconhecida como um exemplo para todas as mulheres, mas quer ser reconhecida principalmente pelos seus trabalhos, como uma boa arquiteta. Limitar a história de Denise Scott Brown unicamente como feminista, sendo que é uma arquiteta com feitos tão importantes é uma falha. Denise, transitando entre o design, urbanismo e fotografia fez inúmeras contribuições teóricas e práticas.
Bibliografia
- AMARAL, Adilson; SARMENTO, Bruno; RODRIGUES, Raphael. Livros clássicos: Aprendendo com Las Vegas. [S. l.]: Arquicast, 2021. Acesso em: 15 jun. 2021.
- CASTRO, Paula Donegá de. Mulheres e o Prêmio Pritzker. Estudos de Caso. III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva, São Paulo, 2014. Acesso em: 17 jun. 2021.
- City Dreamers. Direção: Joseph Hillel. Produção: Ziad Touma. [S. l.: s. n.], 2018. Acesso em: 27 abr. 2021.
- GREENSPAN, ELIZABETH. Denise Scott Brown's Wayward Eye. Architect, 7 set. 2018. Acesso em: 17 jun. 2021.
- Learning from Denise, by Mayorga + Fontana. Universidade Autónoma de Lisboa, 2021. Acesso em: 17 jun. 2021.
- MIRANDA, Carolina. Architect Interview With Denise Scott Brown. Architect, 5 abr. 2013. Acesso em: 17 jun. 2021.
- ORTON, Toby. THE SEMINAL WORK OF PHOTOGRAPHER DENISE SCOTT BROWN GOES ON SHOW IN NEW YORK. Plain Magazine, 27 nov. 2018. Acesso em: 17 jun. 2021.
- SCOTT BROWN, Denise. Room at the top?: Sexism and the star system in architecture. In: Architecture a place for women, [S. l.], p. 237-246, 1989.
- ZEIGER, Mimi. Denise ScottBrown and the fight for recognition. The Architectural Review, 13 mar. 2017. Acesso em: 17 jun. 2021.
O presente ensaio é fruto da disciplina eletiva Reflexões sobre mulheres na casa e na cidade: arquitetura e gênero, ministrada pela professora doutora Sabrina Fontenele, na Escola da Cidade em 2021.